A escravidão no Brasil já foi retratada de diversas maneiras e em mídias diferentes, mas nenhuma delas trata esse momento como O Escravo de Capela faz.
Na história, somos apresentados a Sabola, escravo recém-chegado na fazenda de Capela, e que precisa enfrentar o duro trabalho nos canaviais e a brutalidade dos peões, que só como função fiscalizar e punir os escravos que ousem desviar da árdua rotina de cortar cana, faça chuva ou faça sol.
Em um processo de “adaptação” a realidade da senzala, Sabola ainda precisa assimilar a forma rude que os escravos são tratados, e não demora para ser taxado como o revoltado e aquele que mais deve ser punido e vigiado do que os demais, nascendo aí uma relação de mestre e aprendiz com Akili (ou Fortunato para os peões da fazenda), o escravo mais velho da senzala e que já tinha visto de tudo o que acontecia por ali.
Durante a calada da noite, Akili dava conselhos a Sabola sobre a rotina da fazenda e do canavial, fazendo com que o novato fosse nutrindo ainda mais um sentimento de revolta por estar ali e estar sujeito a tal exploração. É neste momento em que surge a ideia, que mais para frente iria irromper, mudando tudo o que os leitores estavam pensando até então…
Existem sacrifícios muito maiores do que tempo perdido. Sacrifícios que você se arrepende para o resto da vida de ter que fazer.
Paralelo a história de Sabola, a casa grande da fazenda tem uma relação familiar muito interessante e bem trabalhada. Batista é o senhor da fazenda, viúvo já que sua esposa Maria de Lourdes havia falecido de forma obscura na fazenda, e pai de dois filhos.
Antônio é o filho mais velho e o maior carrasco da fazenda Capela. Sanguinário, não pensa duas vezes antes de fazer a chibata estralar nos escravos que ousem fugir daquilo que lhe convém. Muito oposto a ele é Inácio, o filho mais novo está de passagem na fazenda do pai após uma temporada de estudos em Portugal, e tem um pensamento totalmente oposto aos demais homens da família Cunha Vasconcelos. Para Inácio, é desumano ter pessoas escravizadas.
A casa também é habitada por algumas escravas que possuem destaque na trama. Assim como Akili, Conceição é a escrava mais velha da fazenda, e lidera as empregadas dos senhores por conta de sua experiência e presença na rotina da família desde que se tornou propriedade de Batista. Damiana é a mais bela dentre as escravas da casa, e chama a atenção de Inácio desde o primeiro contato entre os dois, construindo aí um romance proibido.
Por favor, tires a vista do chão, Damiana. Não te julgues menos do que eu ou do que qualquer outra pessoa nesta casa. Este teu embaraço em mirar-me os olhos é descabido. Podes levantar o rosto.
Visualmente, o acabamento do livro é impecável. Com bordas vermelhas em todas as páginas, só intensificam ainda mais o teor visceral que a obra possui. Um pequeno ponto que me incomodou na diagramação foi a divisão de capítulos, que não seguia uma linha, fazendo com que alguns capítulos tivessem 5 páginas, e outros 25.
De personagens fortes e muito bem construídos, a história da fazenda Capela é contada por Marcos DeBrito com o tom sanguinário e misterioso que ele sabe usar muito bem, como já vimos em A Casa dos Pesadelos. Não vou contar muito mais dos personagens e da trama por aqui, pois quero que essa excelente obra cause o mesmo impacto que causou em mim.
Confesso que o livro me conquistou de tal forma a vislumbrar ainda mais que é possível fazer terror nacional de extrema qualidade, usando elementos que nós sabemos falar melhor do que ninguém. Lendas folclóricas e a mitologia africana são muito fortes na resolução da trama, e elevam a qualidade da obra num patamar que eu jamais imaginei ao ler as primeiras páginas do livro, fazendo com que O Escravo de Capela saísse da caixinha do clichê e marcasse terreno como uma grande obrar do horror.
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