Filmes e Séries

O Irlandês | Crítica – O melhor cinema de Scorsese na Netflix

O cinema é uma arte de múltiplas facetas, isso parece uma afirmação óbvia, não é? Mas na prática não é bem assim. Muitas pessoas acham que cinema é apenas arte, contemplativa. Outros acham que apenas obras que provoquem algum tipo reflexão sobre a vida, relacionamentos ou política são dignos de serem vistos.

O próprio Scorsese entrou em uma polêmica recentemente. Alguns de seus comentários sobre o cinema de heróis foram descontextualizados, mas muitos “cinéfilos” abraçaram como se fosse verdade absoluta. Também não dá pra abraçar de vez o conceito que cinema é só entretenimento (o que já defendi por aqui).

Cinema é, na verdade, tudo isso. Cada obra tem seu objetivo. Podemos ter uma comédia romântica, despretensiosa nota 10, e um drama oscarizado nota 7,5. E isso é perfeito, um filme pode ser tecnicamente perfeito, mas sua história não tocar sua alma. Por outro lado, podemos ter um filme com alguns problemas, mas que nos faz imergir na história, criando laços com personagens. Fantástico, não?

Partindo disso, fica claro que um filme não precisa ser pra todos. Se pra você um blockbuster de ação é o modelo ideal de cinema, ótimo. Se seu estilo preferido é um épico do Kurosawa, bom também. Ninguém precisa gostar de tudo, menos os filmes do Nicholas Cage, esses atingem a todos. Não? Ok. Então quando sentar na frente de uma tela de cinema, uma TV, um notebook ou um celular (não leia este Scorsese) tenha na sua cabeça qual é o estilo da obra que irá assistir. A menos que prefira ser surpreendido, o que também é muito bom.

Você pode estar pensando, esse crítico safado fez um puta textão pra defender esse filme chato, de 3h30, cheio de ator velho e um diretor gaga e sem noção, não é? Bem, se você pensa assim, pode parar de ler agora, porque esse filme não precisa de defesa, O Irlandês, novo épico da Netflix, é o filme mais ousado do streaming mais amado do Brasil.

Não vou entrar em spoilers, porque estragaria sua experiência, mas o longa é uma aula de de como usar um bom roteiro, cheio de diálogos incríveis, nada clichês e, preste atenção, factíveis. Há um momento hilário, e ao mesmo tempo esquisito, onde os atores falam sobre peixes, dentro de um carro, que você pensa, eu poderia ter dito isso hoje.

 O roteiro, ponto alto do filme, foi escrito por nada menos que Steven Zaillian, ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado, com Lista de Schindler. Ele é famosíssimo por adaptar livros para o cinema. Sim, Irlandês é uma adaptação de um livro chamado “Ouvi dizer que você pinta paredes” (você vai entender ao assistir), escrito por  Charles Brandt, baseado em uma história real.

A trama conta a saga de Frank Sheeran (Robert De Niro), um veterano de guerra que ao voltar ao seu país, começa a trabalhar como caminhoneiro, depois, ao conhecer Russ (Joe Pesci), torna-se o assassino de aluguel preferido da máfia. A vida de Frank muda, ou nem tanto, ao fixar-se como um tipo de guarda-costa de Jimmy Hoffa (Al Pacino), presidente da associação sindical mais famosa dos EUA.

Essa sinopse é mais suficiente do que você precisa saber, antes de assistir, porque o filme é uma aula de atuação e direção. Vou começar rasgando um pouco de seda para o diretor, que esqueceu um pouco aquele ritmo acelerado que costuma impor a suas obras, e opta, inteligentemente, por uma abordagem mais lenta que privilegia o relacionamento entre os personagens. Sua câmera tem uma movimentação espetacular, ora a fotografia opta por câmera no pedestal, girando em seu eixo, mostrando diversas cenas pelo mesmo ponto de vista, outrora a câmera na mão passeia pelos cenários, acompanhando personagens e ações fazendo alguns planos sequências claustrofóbicos. Gênio.

Sobre atuação, Irlandês é praticamente o Mercenários dos filmes de máfia, com atores do mais alto calibre espalhados por toda a película. Incrível. De Niro e Joe Pesci, juntos pela quinta vez em filmes do diretor, parecem como uma evolução de seus personagens em Goodfellas e Cassino, porém com uma abordagem mais madura. 

De Niro, introspectivo em quase todo filme, entrega um personagem corrompido pelo poder, mas que encara tudo com muita naturalidade. Já Joe Pesci entrega uma das melhores atuações da sua carreira, às vezes apenas com expressão corporal, incrível. Diz a lenda que ele recusou 50 papéis seguidos nos últimos anos, mas que ao ler o roteiro e saber quem estaria no projeto, saiu de sua aposentadoria pra brilhar. Melhor atuação do longa.

Por outro lado temos Al Pacino, sempre que está na tela, rouba a cena. Ele dá o tom de humor do filme, hilário ele conduz com o tom de voz e volta aos bons tempo em sua primeira participação com Scorsese.

A montagem do filme é maravilhosa, mostrando diversas linhas temporais, de forma clara, sem se prender a expor com um lettering ao que se passa cada momento, com o tempo você entende, já que o design de produção, fotografia e a caracterização dos personagens entregavam. 

Outro detalhe, o filme conta com muito CGI para rejuvenescer os atores em diversos momentos. De início você pode estranhar, mas com tempo a história te envolve e isso fica irrelevante, até posso dizer, imperceptível. 

É preciso dizer que se não fosse Netflix esse filme nunca seria feito. Com um orçamento de US$ 160mi, extremamente alto para filme do estilo, o streaming deu todo respaldo que o diretor precisava, toda liberdade criativa que um profissional sonha (aloww snydercut). Então a briga encabeçada por Spielberg, de o que é o cinema, perde força. Entre dizer que esse filme deveria ser visto no cinema, eu prefiro dizer que esse filme deveria ser visto por todos, e sem a Netflix isso nunca seria possível. Uma obra-prima, que não é perfeita, mas precisa ser feita. Entreguem os Oscars (ou seria Oscares?). Não sei. Apenas entreguem.

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